A avenida

Crónicas Avulsas de Henrique Bonança

Acerca Daquilo Que Me Recordo da Avenida de Outros Tempos, do seu Comércio, das Pessoas

Desde logo do icónico café Firmo, do cartaz afixado a proibir os trabalhos manuais às senhoras que passavam as suas tardes na conversa, a fazer malha ou croché e a bebericar um garotinho sentadas nos sofás forrados a napa preta e com os apoios de braços de cor verde, enquanto observavam o interminável vai-e-vem dos que se passeavam lá fora, dos inesquecíveis gelados de corte e de mola da tia Camila a entremear duas saborosas e crocantes bolachas; do pronto-a-vestir Trindade Coelho do senhor Duarte e das suas montras compostas com muita arte e muito bom-gosto, das medidas de madeira e das alcofas cheias de ervelhanas da Tia Maria de saias largas e lenço na cabeça, encostada ao canto exterior da loja, sentada num banquinho de madeira.

No entanto, se vindos de poente entrássemos na central rua pedonal dos mosaicos para nela comprar, beber café nalguma das suas esplanadas ou simplesmente passear, do nosso lado direito nos depararíamos com a mercearia e riquíssima garrafeira do senhor Madeira, a casa Dynia, ponto de paragem quase obrigatório da criançada pelo facto das suas montras salientes, a partir da quina de metal cromado que as protegia, reflectirem o movimento de uma das pernas criando a ilusão de que seriam duas.

Praticamente em frente, do outro lado da avenida, com certeza para passar o seu tempo e satisfazer a sua curiosidade, assomando-se às janelas abertas de uma casa térrea de paredes caiadas de branco e platibanda a esconder o telhado, apoiando os cotovelos em almofadinhas, duas irmãs gémeas já idosas, entretinham-se a ver quem por ali se passeava.

Umas casas a seguir, deparávamo-nos com o Empurre, famosa cervejaria de saborosíssimas tapas e iguarias regionais, onde os clientes se dessedentavam ao balcão de madeira envernizada com imperiais bem tiradas e frescas acompanhadas de tremoços ou ervelhanas ainda na sua frágil casca estaladiça servidas em pires das chávenas de café.

Continuando no mesmo lado, quase à esquina desse quarteirão, antes de se converter em loja de atoalhados, existia a marcenaria do senhor Gastão, local onde também trabalhava um outro senhor conhecido como Fato Justo, uma vez que se dizia que os caixões ali construídos eram apertadinhos para poupar na madeira.

A recordação mais antiga, seria eu muito novo, é a do café Portugal, local que conheci por ser lá levado pelos meus pais, tendo gravado na memória um comentário quanto à grande qualidade dos chocos que ali eram cozinhados; em frente à estalagem da Hortinha, espaço onde anos mais tarde foi edificada a actual estação dos correios, localizava-se o café Piquenique, como ele era conhecido, apesar de alguém me ter dito que o seu nome seria outro, local que frequentei algumas vezes com o meu pai, aonde tive a oportunidade de ver uma televisão pela primeira vez na minha vida, experiência marcante que me deixou extasiado.

Mas, antes do café Piquenique, na mesma fileira de casas, para além da barbearia do senhor Corvo e da pastelaria e cafetaria Ideal do senhor Dourado, recordo o estabelecimento do senhor Marinheiro, entre outras razões, pela fantástica exposição de comboios eléctricos que tanto me atraía, prendendo-me à montra por largos períodos imaginando-me a brincar às estações e, anos mais tarde, em tempos posteriores à revolução de 74, ter na sua montra um anúncio em que se dizia aceitarem-se inscrições num determinado partido político, indicando a condição de se ser apoiante da linha de um dos seus dirigentes históricos.

No andar de cima da sapataria Duarte, nas suas duas janelas viradas para a avenida cujos mosaicos se esticavam para cada um dos lados, em cada uma delas, muito arranjadas e de lábios pintados de vermelho vivo, como que a vigiar o que se passava junto ao solo, quando o sol já não batia na parede pintada de cor-de-rosa e pelo fresquinho da tarde, punham-se a ver passar outras duas irmãs gémeas tão iguais que era impossível distingui-las cá debaixo.

Embora não na avenida mas, logo ao virar da esquina da sapataria, na lateral do quarteirão seguinte, encontrávamos a drogaria do senhor Faísca, local de trabalho do senhor Lenine e o senhor Agostinho, estabelecimento antigo onde a pedido do meu pai ia comprar palha-de-aço ou pregos a peso ou, ainda, massa para fixar os vidros das janelas lá de casa.

Outra vez na avenida, à esquina, a pastelaria Império onde trabalhava a dona Augusta vendia gelados da Olá, rifas em caixas de cartão em que se fazia um buraco para saber qual era o prémio, sombrinhas de chocolate da Regina e, sobretudo, bolos do senhor Parquico: gostava muito dos pastéis-de-nata, do bolo-de-arroz e dos pastéis de feijão que comprava quando tinha dinheiro para isso.

Em frente ao café Cantinho do Marquês, local de trabalho do senhor Joaquim, do senhor Chico, do senhor Rufino, do senhor Delmar e de outros cujos nomes já não me lembro, situava-se a Casa Capa que abastecia as mercearias e onde os sapateiros que ainda havia na vila iam comprar o couro para as meias solas dos sapatos que arranjavam.

Claro, como esquecer a barbearia do senhor Padesca, situada antes da sapataria Duarte, que cortava o cabelo ao meu primo Cavaco e que eu acompanhava para entre muitas gargalhadas nossas, nos ser mostrado o pequeno boneco trajado de frade a que o barbeiro puxava um fiozinho escondido nas vestes para levantar e expor as suas partes intimas.

Para além da Casa Raposo, pronto-a-vestir que até samarras alentejanas vendia e da sua raposa empalhada com óculos de arame apoiados no focinho a dar-lhe ar de grande intelectualidade em harmonia com o nome da loja, espaço ainda para recordar o estabelecimento do senhor Gravanita pela particularidade de ser onde a minha mãe me pedia para ir, para que a dona Risete puxasse as malhas caídas das suas meias-de-vidro.

Henrique Bonança
VRSA – 05 de Maio de 2022

PS – Por economia de espaço, a partir de memórias antigas, apenas referi estes locais e estabelecimentos. Poderiam ser também outros, nomeadamente aqueles que existiam no interior e à volta do antigo mercado da verdura, hoje Centro Cultural António Aleixo. Talvez noutro momento, num outro texto!

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