Acerca de esperas, de brumas e de tempos já passados

Crónicas Avulsas

Depois de uma vida inteira a aguentar um aperto que me consumiu como só eu sei, numa conversa telefónica recente com uma familiar, descobri que os “ataques” aos rebuçados da mercearia do meu avô Carlos começaram muito antes daqueles que eu fazia no meu tempo.

Ao contrário do que pensava, não inventei absolutamente nada; tirar dos frascos onde eles estavam fechados, um ou outro rebuçado de fruta, alguns dos saborosos bombons recheados enrolados em prata colorida, torrões de açúcar amarelo da gaveta de madeira ao fundo do balcão por baixo da faca de cortar o bacalhau, tabletes e sombrinhas de fino chocolate de leite da Regina, pacotes de bolachas baunilha estaladiças embrulhadas em papel celofane e uma ou outra latinha de atum em azeite virgem da marca Bom Petisco da fábrica Cofaco do bairro do Lazareto, foi uma intensa actividade iniciada noutra geração anterior à minha, com a agravante de serem vários a atacar ao mesmo tempo!

Para mim foi um alívio saber que esses outros também foram aos rebuçados: a grande culpa angustiante até aí sentida passou a ser repartida por uma data deles. Durante anos a fio, corroído por amargurados remorsos, não consegui apagar e esquecer essas falhas do meu passado. Todavia, todo esse peso de consciência abrandou com aquela inesperada confissão: afinal, não fui o único!

Interessante foi descobrir que a estratégia posta por mim em prática era semelhante à dos outros: esperar pacientemente que uma das clientes pedisse um qualquer produto armazenado na contra loja e, enquanto o avô estava lá atrás no armazém, à socapa, de coração aos pulos, rodar a tampa vermelha de um dos frascos de vidro grosso que ocupavam uma parte do balcão de madeira, lado-a-lado aos grandes sacos de plástico com “palitos-la-Reine” vendidos avulso, abri-los rapidamente e encher as mãozinhas com o que viesse à rede.

Por esses tempos, numa tarde a seguir ao lanche, saí de casa no preciso momento em que na rua estava a decorrer uma guerra de pedrada. Apesar de me proteger atrás de um dos dois carros de mão de aluguer do senhor Zé, sempre encostados ao lancil mesmo em frente à sua taberna, ao espreitar para ver onde os outros estavam escondidos, uma das pedras que andava a esvoaçar de um lado para o outro partiu-me a cabeça.

Sem ter a certeza de quem havia sido o autor do lançamento, calculei quem fosse e, numa outra tarde, fiz-lhe uma espera à saída da escola: enquanto o empurrava encostando as mãos ao seu peito, percebi não ter a certeza de que era ele o responsável e perdi a vontade de o castigar; nesses tempestuosos tempos de guerras com malta de outras ruas, frequentava a catequese para fazer a Comunhão e o Crisma, cerimónia para a qual a minha mãe costurava o uniforme de marinheiro prometido; com a dúvida instalada, para não ser castigado e perder a farda, decidi proceder de acordo com os ensinamentos que recebia às quartas-feiras de tarde na igreja, numa sala perto da sacristia onde o senhor João, sacristão ajudante nas missas do senhor padre Passos, guardava o vinho e as hóstias.

No fundo, esperar é comum a todo o tipo de predadores: eles aguardam que a presa passe por eles para atacar com o mínimo de esforço e, assim, satisfazer a sua necessidade de alimento, poupando preciosa energia.

Acontece deste modo em todo o reino animal: quem nunca viu imagens de gazelas sedentas à volta de um charco, a beber água com mil cuidados e, numa fracção de segundo e à falsa-fé, uma delas é abocanhada por um crocodilo que ali estava quietinho à espera, imerso e camuflado? Todos nos arrepiamos ao lembrar as geométricas e tenebrosas teias de aranha, autênticas armadilhas de cruéis caçadoras que dotadas de paciência infinita, esperam que algum insecto incauto fique enredado nos fortíssimos e pegadiços fios que engenhosamente teceu com a sua baba, para depois lhe aplicar uma ferroada com um bico venenoso.

Tal como comentava numa outra crónica um meu amigo de longa data, os corsários de suas majestades britânicas, a bordo dos seus poderosos barcos de guerra com muitos canhões, desesperavam ao largo da costa enquanto esperavam que as naus portuguesas zarpassem do seu porto de abrigo: dotados de “Cartas de Corso”, com a actividade predatória legalizada, podiam até atacar e rapinar os seus mais antigos e fidelíssimos aliados, sem receio de castigo dos seus soberanos que a título de compensação se reservavam o direito a receber a sua parte do bolo.

Na nossa cultura, provavelmente consequência do clima ameno existente por estas latitudes, querendo nós sair de casa, se estiver a chover, algo que acontece muito de vez em quando, voltamos para trás e sentamo-nos no sofá da sala a olhar para o ecrã da televisão, obviamente, à espera que “escampe”.

Parece ser mesmo assim, enquanto povo e em questões de temperamento, não há como alterar esta nossa forma de estar na vida: tanto fazemos esperar os outros, como esperamos por eles!

Não por acaso, desde o desaire de Alcácer Quibir, fragilizados e órfãos, esperamos por D. Sebastião: o soberano que na sua procura de vã glória, desastradamente nos levou à desgraça; aquele que chegado de tempos passados, embrulhado num manto de difusas brumas, com toda a certeza, será o nosso salvador!

Henrique Bonança
VRSA – 27 de Janeiro de 2021
Foto:Photo by Arthur Humeau on Unsplash

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