Crónicas Avulsas
Foi neste último verão, na esplanada de “O Pescador”, restaurante à beira-rio onde se petiscam das mais tradicionais iguarias da nossa típica culinária, integrado numa área que me remete para um passado de tantas boas recordações, espaço de brincadeira que se eternizava em infindáveis tardes, entre mergulhos no Guadiana saltando das escadas do cais da Sacor, nadar em cuecas na praia-dos-empelotes ou correr atrás das gaivotas, ao repartir um fabuloso arroz de lingueirão que enchia uma panela de barro, que o Rafael nos falou do seu avô.
Mirava, a divagar por entre memórias, o outro lado da avenida calçada com paralelepípedos de granito; ali, mesmo em frente da nossa mesa, terminava o antigo jardim e a linha de impecáveis canteiros rectangulares bordejados a relva, guardados zelosamente pelo senhor João, jardineiro incumbido de evitar excessos nas brincadeiras; nesse olhar, procurei sem já a encontrar, a velha guarita de madeira pintada de cinzento, abrigo do Guarda-Fiscal de vigia ao rio, nas noites de frias nortadas.
A minha filha sentava-se à minha frente, os meus netos a meu lado, entre mim e a mãe; o cantante sotaque alentejano do Rafael, vindo do outro lado da mesa, resgatando-me do vagabundear por outros tempos, captou a minha atenção: “…o meu avô chamava-se António Guerreiro, um homem alto e forte, bem constituído, era ele que cuidava das plantações na Mata Nacional de Valverde, na Bacia Hidrográfica do Sado, e escolhia para abate os pinheiros mansos de grande porte, de troncos com a forma certa para fazer as cavernas das embarcações construídas em madeira…”.
Sendo os meus netos, por via materna, trinetos de um construtor naval de Vila Real de Santo António, o senhor José do Nascimento, homem empreendedor e apaixonado pela sua profissão, cujos filhos, Germano, João e António, foram seus continuadores na actividade, o tema despertou em mim interesse suficiente para tentar perceber se essa madeira, oriunda da zona de Grândola, seria utilizada nos velhos estaleiros da nossa terra.
Através de contactos com os antigos grandes mestres José Calvinho e António “Cavalinho”, ambos felizmente ainda entre nós, obtive a confirmação: nessa época, até aos finais dos anos sessenta do século passado, a madeira dos pinheiros mansos tinha de facto origem em Grândola, servindo para as cavernas, comprada a um madeireiro de nome João Bones que as transportava pela calada da noite, uma vez que o veículo usado vinha sempre com excesso de carga; as quilhas e as tábuas para os cascos e posterior calafetagem eram de pinheiro bravo, provavelmente vindo de Monchique e de Leiria ou de outras paragens.
Portanto, as circunstâncias e dinâmicas da vida, proporcionaram esta interessante casualidade: apesar da distância geográfica, vários anos mais tarde, os descendentes desses protagonistas que contribuíram de diferentes formas para o desenvolvimento da indústria de construção naval e, consequentemente, a criação de muitos empregos ligados às indústrias piscatória e conserveira, encontraram-se.
O meu filho Max, em conversa a propósito desta coincidência, referiu a probabilidade da existência de um fenómeno, a que à falta de melhor explicação, alguns dizem ser o destino!
Tomando como exemplo um autocarro que parte com um determinado destino, ele será linear; contudo, ao regressar ao ponto de partida, tornar-se-á circular. Ao longo da viagem existem paragens intermédias. Os passageiros decidem se saem nessa paragem ou se continuam. Estará essa decisão pessoal, previamente programada por alguma entidade com capacidades incomensuráveis?
No caso do encontro entre a Íris e o Rafael, várias gerações depois, para além de ser uma feliz e peculiar coincidência, aceitando como adquirido a existência de um destino pré-programado, na linha de pensamento abordado no anterior parágrafo, estaríamos em presença de um destino circular!
Em anterior crónica, creio já ter abordado a questão da crença no destino, em oposição a uma interpretação mais objectiva e racional, baseada em circunstâncias e casualidades, passando pelo livre arbítrio ou decisões assumidas a cada momento por cada um de nós, das quais resultarão factos que por sua vez coincidem ou não com outros.
Sem me atrever a questionar a sua existência – respeito e admiro quem possui essa convicção – confesso ter dificuldade em conceber uma entidade com suficiente poder para à escala do Universo, com tantas formas de vida todas elas diferentes e a interagir, tudo programar e condicionar a um plano meticulosamente elaborado.
Será assim?