Acerca de Presumir e de Embaraço


Acerca de Presumir e de Embaraço


Seguramente, terão passado mais de trinta muito rápidos anos; numa manhã com muitos telefonemas, estando eu sentado à secretária instalada ao fundo da recepção da seguradora em que trabalhava, ouvi a porta de alumínio cinzento clarinho do escritório a abrir: o peculiar som seco da base metálica oca do pequeno estore laminado a bater solto na estrutura fez prova disso, logo seguido de um outro mais forte, criado pela potente mola que a puxava e voltava a fechar com uma força inesperada; olhei para perceber quem entrara e, pelo espaço alcatifado adentro, vejo caminhar até mim um senhor meu conhecido que me diz vir comprar um seguro de vida.

Não dominava, nem sequer tinha experiência em seguros de vida, não conhecia inteiramente a nossa oferta, mas, aflitíssimo, para não perder a possibilidade de venda, tentei ocultar essa realidade como pude. Depois de lhe falar de algumas alternativas, bem apoiado pela documentação de suporte, o senhor escolheu aquele que se encaixava melhor na sua necessidade, considerando também a sua disponibilidade financeira.

Foi com imensa alegria quase incontida que comecei a preencher a proposta de seguro do primeiro seguro de vida em que a minha participação era exclusiva desde o início do processo. Quando chegámos ao quesito relativo à cláusula beneficiária, a olhar para os olhos do cliente, de esferográfica de tinta preta entre os dedos da mão direita, sabendo eu que não havia filhos no casal, perguntei-lhe o nome completo da esposa.

A resposta do senhor chegou como que se me batesse em cheio um comboio-correio ou uma locomotora a gasóleo da linha regional em alta velocidade; disse-me ele com secura: “ o seguro não é para a minha mulher, é para outra senhora!”.
Ao presumir que o seguro de vida seria em favor da esposa do senhor, criei um tremendo embaraço de que saímos graças à generosidade do cliente que minimizou a minha infeliz e precipitada “tirada”, desviando a conversa para outros temas.

Anos antes da minha chegada à profissão, usando o fortíssimo argumento de que o seguro, no final do prazo contratado, garantiria o pagamento de um capital para o seu filho, assim que ele atingisse a maioridade, um colega tentou vender a um determinado cliente um seguro Dotal, caracterizado precisamente por pagar um capital em caso de vida da pessoa segura, ao contrário dos tradicionais seguros de vida que pagam capitais em caso de sua morte.

O cliente recebeu-o com muita simpatia em sua casa, localizada numa das aldeias da serra, escutou-o atentamente, contaram estórias um ao outro, um de pesca e o outro de caça, beberam uns copos de vinho caseiro feito com uvas dona Maria de produção própria, comeram fatias de saboroso pão cozido no forno de lenha do quintal, degustaram umas belas rodelas de chouriço da matança recente e deliciaram-se com uns bons nacos de presunto.

No final, já perto da hora do jantar, quando o meu colega já se convencera da imediata concretização do contrato, o homem disse-lhe que gostara muito daquilo que ouvira mas, lamentavelmente, não tinha filhos!

A informação incorrecta dada pelo mediador de seguros que indicara aquele cliente fez presumir que o senhor seria um alvo ideal para subscrever um seguro Dotal, no entanto, a realidade transformou o momento da venda num imprevisto embaraço; felizmente, nem tudo se perdeu, uma vez que o belíssimo lanche foi muito bem regado!

Voltando ao período em que trabalhei em Faro na mesma seguradora, lembro-me de um dia em que a recepção esteve extremamente animada pela sucessiva visita de três senhoras, todas elas ainda jovens chorosas viúvas trajadas de luto, que foram tratar da papelada necessária para o recebimento do capital por falecimento daquele que seria o seu companheiro, nosso cliente subscritor de um seguro de vida que pagaria um determinado capital pela sua morte.

O senhor havia tido várias relações, tendo dito a todas as senhoras que possuía um seguro de vida. Quando ele faleceu de forma inesperável, naturalmente, cada uma delas tentou aceder ao capital do seguro que presumia existir em seu favor, criando-se um enorme embaraço muito difícil de gerir por quem teve de lidar directamente com as emoções das envolvidas.
O seguro existia de facto, contudo, a cláusula beneficiária jamais foi alterada pelo cliente e o capital contratado foi pago à primeira esposa por ser aquela cujo nome constava no contrato. As outras duas senhoras, sobretudo a que com ele vivia no momento do falecimento, apesar de se sentirem injustiçadas, nada receberam!

Em suma, presumir que algo é como supúnhamos que fosse sem o ser, pode criar um espinhoso e desagradável embaraço!

./Henrique Bonança

VRSA – 03 de Fevereiro de 2021
PS – Texto dedicado ao colega e amigo Jorge Leiria, referência profissional e humana para mim e para muitos outro

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