Acerca de Sopros Milagrosos

Acerca de Sopros Milagrosos

Crónicas Avulsas

Alguns dias atrás, ao tentar cortar uma fatia de um pão alentejano, a lâmina dentada da faca desagarrou-se da côdea estaladiça da cabeça e mordeu-me num dedo. Os bicos da serra só pararam de raspar a pele quando bateram na base da unha. Felizmente foi escoriação superficial. Sacudi a mão e soprei a ferida. Fi-lo por instinto ou talvez na procura de um milagroso alívio imediato para a dor. A escorrer um fiozito de sangue sem grande importância, corri para a caixa de primeiros socorros em busca da água oxigenada, da Betadine, do algodão e do rolo da gaze. 

Condicionado por saber que hoje em dia qualquer produto de consumo tem prazo de validade, procurei a data limite de utilização e descobri que a da Betadine estava ultrapassada desde há já mais de um ano. Havia-a comprado quando mudei de casa sem que alguma vez a tivesse utilizado: em pensamento, agradeci por o mesmo não ter acontecido ao algodão ou à gaze. Limpei o sangue com a água oxigenada e soprei o golpe antes de enrolar o dedo. Não sei se o fiz para secar e criar cascarrão mais depressa, se foi para curar melhor, se por um automatismo inconsciente adquirido.

Não me recordo de que o mercúrio cromo do frasquinho de vidro castanho e rolha de cortiça que o meu pai comprava avulso ao senhor Jorge ou ao senhor Jacques na farmácia Carrilho, para besuntar de vermelho vivo os joelhos raspados dos seus filhos, tivesse algum prazo para ser consumido: durou toda a nossa meninice e ainda sobrou mais de meio frasco! 

Na brincadeira, fazíamos desenhos na pele usando um pedaço de algodão em rama ensopado em mercúrio. Antes de este aparecer nas farmácias, havia a tintura-de-iodo de cor castanha que fazia arder a carne das feridas obrigando-nos a soprar e, que me lembre, também não tinha essa modernice do prazo de validade.

Sem que tivesse alguma vez visto alguém fazer isso, havia malta que dizia ser bom para as feridas, dá-las a lamber a um cão da rua por eles curarem assim os seus ferimentos, sem precisar de nada mais. Para limpar e sarar feridas, eu preferia soprar para ver se estancava o sangue e, quando chegava a casa, usava água oxigenada e mercúrio cromo. Às vezes tapava a ferida com um “curita”. Nunca me atrevi a dar a lamber a um cão. O meu pai falava muito das infecções e eu tinha medo disso. Para rebentar e coser com linha de alinhavar as bolhas de roeduras nos calcanhares, o meu pai desinfectava as agulhas com que a minha mãe costurava os vestidos das suas clientes, queimando-as num bocadinho de algodão embebido em álcool antes de as espetar.  

Quando a comida ou a sopa estão muito quentes, contraímos os lábios formando uma abertura circular e sopramos para arrefecer, da mesma forma que quando o fósforo que seguramos foi consumido até a sua chama nos tocar dolorosamente a pele, sacudimos a mão e assopramos a ponta dos dedos.

Creio ter em anterior crónica referido o momento em que o meu filho Max apanhou uma irresistível pastilha elástica da calçada e, depois de a soprar, tê-la enfiado na boca para a mastigar. Ao ser repreendido por mim, usando eu o fortíssimo argumento de que o “estica” estava infectado com os micróbios do chão, ele desarmou-me respondendo que tinha olhado e não tinha visto nenhum!

Quando deixamos cair no chão um qualquer objecto, ao recolhê-lo, mesmo que não haja sujidade visível, acontece frequentemente sacudirmos e soprarmos antes de o arrumarmos no seu sítio. Será para limpar de eventuais porcarias, para afastar micróbios indesejáveis ou devido a um qualquer ritual de purificação ancestral?

Talvez esse tipo de reacção espontânea justifique o comportamento de um senhor que passeava à minha frente: ao se ter apercebido que a máscara profiláctica que guardara no bolso das calças havia caído ao chão, interrompeu a marcha para a apanhar. Voltou a enfiá-la na algibeira, não sem antes a sacudir, batendo-a duas vezes na coxa e, depois, com toda a naturalidade, assoprar vigorosamente.

Já me aconteceu a mim, a acção é absolutamente mecânica, não se pensa na asneira que se faz, até parece que o acto de sacudir e de assoprar, para além de retirar sujidade que se tenha eventualmente agarrado, repele qualquer perigoso micróbio e, nestes duros tempos de pandemia, ser muito eficaz contra os vírus! 

Henrique Bonança

VRSA – 01 de Janeiro de 2021

PS – Após honroso convite do responsável do guadianadigital.com, iniciei colaboração com esse jornal digital, pelo que também poderão encontrar e ler as minhas crónicas nesse “site”.

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