Crónicas do Largo da Bica
Da malta toda, o que dava mais toquezinhos com a bola era o Tomás. No que diz respeito a toques na bola, ninguém na vila lhe fazia sombra. Nem na Bica, nem nas Hortas, nem no Bairro Operário, nem no Bairro da Caixa, nem tampouco no Bairro da Lata. Ele era um prodigioso malabarista com a borracha. Fosse com os pés, fosse com as mãos. Um fenómeno do outro mundo. Só vendo!
Eu não era dos piores da Bica. Desenrascava-me mais ou menos com 343 toques de bola no pé direito, de seguidinha, sem a deixar cair no chão. Nunca mais consegui bater esse record pessoal. Tentei durante anos. Quando me aproximava desse incrível número, antes de lá chegar, não aguentava mais: a perna de apoio fraquejava-me. A cada toque que dava, a coxa doía-me cada vez mais e o pé respectivo agarrava-se teimosamente às pedras da calçada. Por fim, apesar da minha vontade, da minha resistência, faltavam-me as forças e a bola escapava-se-me. À socapa, antes de ela cair, tentava apoiar-me a uma parede com a pontinha dos dedos mas, os gajos estavam atentos. Diziam logo que assim era batota e que não valia!
A seguir vinha o Fausto com 424 toques. Um feito assinalável. Não é para todos. Quem jogou à bola quando era miúdo saberá reconhecer-lhe o mérito. Quando ele estabeleceu o seu fabuloso record, houve um invejoso que reclamou da sua validade. Isto porque ao toque 127, por uma insignificante fracção de segundo, a bola escapou-se-lhe do pé, batendo de raspão na parede da casa do Chico, irmão da Esmália e da Carminda da Rua Estreita. De facto, foi verdade que a bola bateu na parede mas, incrivelmente, esticando-se quase até rasgar a virilha, com a ponta do sapato, ele recuperou o controlo da bola que parecia mesmo ir cair ao chão. Apesar dessa miserável reclamação ciumenta o record foi registado e aceite.
Mas, voltando ao Tomás, em toquezinhos, ele estava a um nível diferente. O record dele de 4.784 só não tinha outra expressão porque a malta, já cansada de tanto toque, ia-se embora para casa. Sem registo visual não havia reconhecimento. Era melhor ler um livrinho do Major Alvega ou um outro qualquer de cobóis do que estar ali a olhar para uma bola que parecia fazer parte integrante do pé.
O segredo do Tomás era muito simples. Dava toques com os dois pés. Quando chegava aos quatrocentos, mudava de pé de apoio. Não se cansava nunca. Os toques não eram toques, eram toquezinhos. A bola mal subia, sendo mínimo o risco de perda do controlo da situação. Até parecia que estava atada ao pé com um elástico. Com domínio absoluto da técnica usada para os toques, entusiasmava-se e dificilmente parava. Dava para comer sandes de chouriço enquanto dava toques na bola.
Uma tarde, já saturados, perguntámos-lhe em quantos ia. Ele mudou de pé de apoio, limpou o suor da testa com as costas da mão, e, sem se desconcentrar, respondeu: “vai em 2.345,6,7,8…”. Fomos para casa lanchar. Ao voltarmos, ainda ele dava toques.
A rodar a bola na ponta dos dedos como fazem os jogadores de basquetebol, o Tomás também era o melhor. Começava no dedo indicador da mão direita. Quando a bola perdia velocidade, com a mão esquerda empurrava as orelhas da bola e, mudava de dedo. Ia para o polegar, voltava ao indicador, depois ao do meio, ao anelar, ao mindinho, a todos. Aquilo nunca mais acabava. Só mesmo o Tomás!
Contudo, o que eu mais apreciava nele era o seu fino sentido de humor e a sua capacidade para inventar e contar estórias.
Costumava dizer-nos que os dedos da mão eram os nossos ministros: o dedo polegar seria o ministro dos transportes por ser utilizado para pedir boleia; o dedo indicador seria o das obras públicas porque com ele se limpa o nariz; o dedo médio seria o da guerra porque quando se dá uma bofetada, ele vai à frente; o dedo anelar seria o das finanças por ser aquele onde se usam os anéis; o dedo mindinho seria o ministro do interior por ser com ele que se verifica se a galinha tem ovo.
Se visse um carreiro de formigas pretas, dizia que elas iam para um funeral. A partir daí inventava uma qualquer estória em que falava da formiga. Coitada, morrera num terrível acidente, que alguém a pisara sem querer, que tinha sido muito trabalhadora, que tivera muitas amigas.
Se as formigas transportassem algum alimento para o ninho, dizia que era uma procissão. A estória desenvolvia-se e ficávamos a saber que a formiga da frente era o padre, as outras carregavam os andores.
Ao meu grande amigo Tomás Rita da Rua Estreita, portanto, do Largo da Bica com todos os direitos, um autêntico portento de imaginação e de habilidade com a bola!
Henrique Bonança
Altura – Fevereiro de 2018