CRÓNICAS DO LARGO DA BICA


Acerca de Milagres e de Mistérios

Naquele fim-de-tarde saí de casa pela porta da frente, aquela que ao puxá-la de dentro se abria para a nesse tempo chamada de rua do Brasil. Ia encontrar-me com amigos para irmos passear à avenida dos mosaicos e dos cafés com esplanadas ou ao jardim que acompanhava a margem do rio, onde houvesse miúdas para serem olhadas. Ao fazê-lo, o Benfica de pêlo escuro encaracolado que passava as manhãs e as tardes a fingir dormitar no poial da porta da vizinha Maria João, a que ficava mesmo em frente, no outro lado da calçada da rua, levantou-se à passagem de uma bicicleta e, para afirmar a sua dominância territorial, escutando-se as suas unhas a raspar as pedras calcárias, correu atrás dela a ladrar furiosamente, quase a conseguir morder as pernas do imperturbável ciclista que nem se dignou olhar para o bicho, mantendo a mesma cadência molengona.

Quase que não ouço a velha vizinha Maria chamar-me: à semelhança das outras vezes queria que eu atentasse aos seus últimos versos. Memoriava-os e com eles construía bonitas quadras rimadas com temas do seu quotidiano e de como ela observava e interpretava a vida. Depois, sem que jamais eles tivessem sido escritos, generosamente, dizia-os a quem passava.

Confesso que das primeiras vezes tentei escapar-me. Todavia, a dona Maria impedia-o, segurando-me firmemente pelo braço, aproximando-se de mim. Não me dava qualquer outra alternativa. Tinha mesmo de a escutar. Nesse tempo, ainda não havia esquecido as muitas bolas que mal chutadas por algum de nós nalguma das nossas eternas jogatanas no Largo da Bica, depois de esvoaçarem em arco e caírem “ao pesinho” no seu quintal traseiro, eram devolvidas já espetadas por uma faca pontiaguda ou cortadas à tesoura, atirando-as por cima do muro da casa.

Mas, esses eram tempos já muito remotos: na verdade, quando me libertei do peso dessas memórias e do rancor de nunca mais ter sido convidado para os aniversários da sua neta Paula, castigado por num deles ter comido demasiados pastéis-de-nata, pelos versos que escutava, descobri uma senhora sensível que, afinal, tal como eu hoje aos sessenta anos, privilegia a calma e o sossego e abomina o som de bolas a bater nas paredes.

Uns anos mais tarde, pressentindo o final da sua vida, após escolher a roupa com que queria ser sepultada, a dona Maria comprou uns sapatos e pediu à filha que os levasse a um sapateiro para que se lhes aplicasse protectores metálicos nas biqueiras e nos calcanhares.
A filha, perante tão estranho pedido, quis saber o porquê, tendo obtido como resposta que depois de morta, já na outra vida vindoura, sem saber por onde iria andar, nem sequer durante quanto tempo, o melhor seria partir desta bem calçada.
Curiosamente, na sequência de uma desgastante doença prolongada, anos mais tarde, quando chegou a vez da sua filha, a dona Libânia quis que a criativa Paula lhe tratasse das unhas, pintando nelas como se fossem telas, belas flores de vários matizes. A justificação que deu à filha foi a de que tendo tido ao longo da sua vida terrena dois maridos que haviam abalado antes dela, queria chegar atraente e bonita ao outro mundo.

Depois de vários meses sem comprar o semanário Expresso, para descansar dele e desenjoar, em Abril deste ano fraquejei e cedi ao irresistível chamamento vindo de uma banca de jornais encostada à parede de uma livraria e adquiri um dos exemplares. Anos a fio a consumir esse jornal em excesso, muito fragilizado, na fase crítica do desmame, não consegui resistir, contudo, também não me arrependi!

Na sua revista, um dos cadernos que compõem o conjunto, deparei-me com uma interessante entrevista a uma escritora e jornalista que desconhecia.

Claramente de formação católica, imbuída de conceitos de continuidade que incluem acreditar nalguma forma de vida depois da morte, aos seus 78 anos bem vividos, Leonor Xavier assevera convictamente que “o milagre é a vida, o mistério é a morte”.
Ao escrever esta crónica, não pude evitar lembrar-me do alcance e impacto dessa afirmação. Com efeito, se alguns de nós atravessam a vida com a certeza de que ela é única e que tudo termina com a morte física, não havendo absolutamente mais nada, para muitos outros, com a morte física terrena inicia-se uma outra de características que ainda ninguém conseguiu definir, afastando definitivamente quaisquer dúvidas que possam persistir.

No fundo, tentando ir ao encontro de Leonor Xavier, o milagre da vida será o somatório de todas as parcelas das nossas vidas desde o nosso nascimento, tal como o nascimento em si mesmo, de todos os tipos de vida, as do presente e as do passado, da nossa incapacidade de explicar racionalmente como foi ela criada e com que objectivo se é que ele existe; A incerteza do que está para além da nossa morte suscita e adensa o mistério: haverá mesmo algo? Será que existe outra vida? Que tipo de vida?
E é essa convicção, a de que existe algo mais para além daquilo que conhecemos, que permite que alguns de nós adquiram o conforto espiritual que possibilita a aceitação da progressiva degradação física e do inevitável final da vida!

Não por acaso a minha vizinha Maria mandou reforçar os sapatos com que caminharia pelos trilhos da outra vida. A morte física terrena deixa assim de significar o final de tudo, passando a ser simplesmente uma etapa pessoal que será cumprida, existindo outras ainda por vir!

Henrique Bonança
VRSA – 14 de Junho de 2021
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