Nos cem anos do Farol mais a leste de Portugal

No sentido de contribuir para acicatar memórias e avivar recordações, o meu contributo para esta tertúlia será breve, mas imbuído daquela nostalgia que nasce nas pessoas mais velhas que têm ainda o privilégio na vida de poder ir ao fundo do tempo pescar na lembrança.

Embora coloque em relevo alguns pormenores estruturais que sempre me sensibilizaram, será na área dos afetos que vou contar a minha relação com aquele que, há um século, ilumina as noites, quilómetros em redor, sete vezes em cada segundo, com o seu facho bidireccional.

Forçado por uma queda que dei, com pouco mais de três anos, a ficar internado em Setúbal, só regressei a Vila Real de Santo António depois dos oito anos e, mesmo assim, para morar longe de do farol, no canto a oeste das traseiras do Torreão Norte da nossa então vila. Daí que as minhas lembranças sejam mais a partir da pré-adolescência.

Porém, pouco tempo depois, fomos estrear uma casa acabada de construir, nas traseiras da Fábrica Aliança, na Rua João de Deus, onde começavam as dunas e a luz do farol batia forte sobre a fraca iluminação pública de incandescência, alimentada a corrente contínua.

Esta tinha a vantagem de não carregar a poluição lumínica sobre um céu que nos alimentava os sonhos de criança, em especial no Inverno, quando a noite caía mais cedo.

E lá estava o farol, altíssimo, acima das nossas cabeças, com aquela luz de regularidade permanente. Começou aí o meu encanto com o nosso farol. De tal forma que, sempre que viajo pelo litoral, faço os possíveis por visitar o farol que ali houver.

A nossa casa era a rua, as coisas que existiam na rua e com elas fazíamos as nossas vivências. Na rua estavam as conserveiras, os pescadores, no rio as traineiras, as enviadas, os botes e galeões, as descargas constantes da sardinha e do biqueirão, as vagonetes dos cais e as carroças do atum. Sempre que a cabeça se levantava sobre os esforços, estava presente a silhueta daquela esfera brilhante, na noite pela luz artificial e feérica, durante o dia pelo ouro do sol nas lentes. E até nos dias cinzentos, ia jurar que lhe via sobre os prismas a refração de tonalidades de azul.

Havia a estrada do farol com bermas de areia e piso em barro, onde corríamos com o arco para ele e a sua casa, que eram a referência de meta de partida, chegada ou ida e volta. E, pelo caminho, ficava a estrada dos poços, ao fundo, na mata, onde o vermelho da cúpula dominava sobre o verde dos pinheiros, numa espécie de bandeira portuguesa. O farol substituiu o “Farolinho de Ferro”, ponto de referência e romaria de várias gerações de vilarealenses,

Já adolescente, subi várias vezes ao alto do nosso farol, ficando a conhecer os arredores e a deitar os bofes pela boca. Não era fácil, pois o faroleiro não facilitava.

No mar, onde ia às vezes assistir à pesca de cerco com a complacência do mestre Zé Ferreira, de nome igual ao do meu pai, vi como a presença de um farol é útil. Quando deixávamos de ver terra, aquela luz, inexorável na persistência, e forte, cruzava os céus a dizer-nos de onde vinha e para onde voltar, logo que necessário.

Na década de oitenta, subi várias vezes, já com elevador para ter uma noção do crescimento da vila à sua volta, ver o impacto positivo na construção das vedações e, até, para ver e fotografar uma plataforma com o seu bico de fogo a arder, em resultado de uma prospecção de gás natural perto da Foz do Guadiana.

Fiquei um pouco nostálgico quando em 2001 terminou a função de rádio-farol. Tinha qualquer coisa de telúrica, essa missão do nosso farol, então substituída, creio que pelo GPS.

Aos seus responsáveis, na Marinha, que têm sabido acompanhar e modernizar as funções do nosso farol, saibam que me junto aos defensores da continuidade da existência desta preciosa e agora secular infraestrutura e desejo êxito na sua valiosa missão de orientar a navegação para a ajudar a manter segura. Termino como numa redacção de menino da escola primária: «Eu gosto muito do nosso farol!»

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