Vicente Campinas, o homem da beira-rio

Vicente Campinas, o homem da beira-rio

Conheci António Vicente Campinas ainda muito novo, quando me deslocava à sua papelaria a comprar cadernos ou lápis e nem sequer sabia que aquele era o homem que tinha escrito um livro que repousava numa estante de corredor, em casa dos meus primos, onde o descobri e passava algum tempo a decifrar o significado daqueles poemas.

“Aguarelas”, era um livro que consultava com regularidade, nas tardes quentes em que o sol deixava de ser de branco feérico, filtrado pelas cores algo fantásticas dos vitrais daquela peça da casa dos meus primos virada à Rua Almirante Reis, para mim mágica. 

A minha curiosidade era aguçada pela capa de aspeto antigo, onde se misturavam diversos elementos sedutores, uma lira da música, um pincel e uma lata de aguarelas, flores e ondas do mar e umas letras que pareciam saídas dos prospetos do “Cine-Foz“. 

Porém, habituado aos romances volumosos que o meu pai lia, repletos com parágrafos intermináveis, o mistério maior era o porquê da existência daquele livro magricela, com as frases partidas e pequenas e muitas palavras difíceis de decifrar. Não me recordo que idade tinha quando tive pela primeira vez na mão o “Aguarelas”. Sei que foi bem cedo e sei que aquele livro teve influência em mim, tanto como teriam mais tarde as “Aventuras de Tom Sawyer”, de Mark Twain.

Só voltei a contactar com Vicente Campinas depois do 25 de Abril em torno de duas paixões que nos seduziam a ambos. O PCP e o Jornal do Algarve, onde colaborava com alguma regularidade, graças à paciência do então chefe de redacção José Manuel Pereira.

E foi pela sua mão e influência que me escolheram para ocupar o cargo que JMP deixava, depois de o exercer com tanta competência e moderação, mantendo a chama acesa da Imprensa Regional e o carinho dos leitores, tal como o tinham feito o seu fundador e o filho. E foram ainda os conselhos de JMP e de Vicente Campinas que me guiaram nesses anos muito difíceis para a sobrevivência do jornal (1979-1983) , quando, por via da política monetarista de desvalorização do escudo, praticamente todos os meses os custos de produção prometiam submergir o jornal com a crise. 

No Jornal do Algarve, Vicente Campinas escreveu também com o pseudónimo de António do Rio. A escolha deste nome para as suas crónicas, revela também, a par da obra, a profunda marca que no íntimo lhe terá deixado o sofrimento das gentes da “baixa-mar”. E entendi-o perfeitamente, porque a minha família materna trabalhou nas várias fábricas de conservas e a paterna embarcou nas traineiras e enviadas ou implicou-se nas descargas da “muralha”.

Quem quiser conhecer a alma profunda da hoje cidade de Vila Real de Santo António, tem obrigatoriamente de ler ou reler Vicente Campinas. Até hoje, ninguém como ele, escritor do neo-realismo português de obra vasta e talento reconhecido, plasmou de forma tão realista as vicissitudes e falas daqueles a quem a vida castigou com o rótulo de um viver nos limites da fome e da necessidade. 

Nos tempos da Pandemia de hoje, onde é preciso ir em busca de coragem para enfrentar os desafios do presente e perspetivar um futuro melhor, reler Vicente Campinas é partir à descoberta dessa gente humilde e das formas como superaram o dia-a-dia. É partir ao encontro da dureza das formas de relacionamento humano e do discurso direto, quando se está nos limites da sobrevivência, mesmo se, por detrás das palavras de cada personagem, anda implícito o amor, o sacrifício, a partilha e a dedicação.

A obra de Vicente Campinas será sempre o quadro pictórico, vivo, da algaraviada da baixa-mar, quando cheirava a atum pelas ruas, se apregoavam as conquilhas, as traineiras, em pousio, enchiam o Guadiana e os cargueiros os cais da muralha, a cheirarem a alfarroba e a palha.

Quero voltar a recordar a sua figura de homem afável, conversador, amigo, comprometido com a causa dos deserdados, a sua sabedoria experiência e conselhos, o seu amor a Portugal e à terra onde nasceu, os sacrifícios que fez pelos outros, quando a sua capacidade e talento lhe permitiriam ter uma vida descansada. Mas ele sabia bem que ninguém é livre quando os outros são escravos, que ninguém se pode sentir confortável quando para os outros sobra uma vida arrastada. 

A nota biográfica de António Vicente Campinas, nascido em Vila Nova de Cacela, em 28 de Dezembro de 1910, pouco tempo depois da implantação da República, e trazido para Vila Real de Santo António um ano depois, encontra-se exemplarmente descrita no livro “Guardador de Estrelas“, uma antologia de Gil Furtado, editada em 1994, prefaciada pelo escritor Urbano Tavares Rodrigues.

Ao homem, ao poeta, ao escritor, ao camarada e ao amigo, dedico estas linhas e, tal como há dez anos, faço votos para que seja sempre recordado como agora, em especial pela comunidade do concelho de Vila Real de Santo António, cujo povo amou e lutou para que tivesse uma vida melhor, que relativamente tem, embora os tempos sejam de dúvidas e de sombras.

Descansa em paz que nós cuidamos da tua obra!

8 de Janeiro de 2021

José Estêvão Cruz

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