Crónicas avulsas – Acerca de Velharias, de Predadores e de Relativismo
Acerca de Velharias, de Predadores e de Relativismo

Desafiado por um colega de trabalho, homem que vê utilidade nos achados e nas velharias que compra ou que arrebanha nos caixotes do lixo, descartadas e atiradas fora por quem as despreza e não lhes dá qualquer valor, recuperando-as para posteriormente as vender em feirinhas da especialidade, um meu amigo aceitou ajudá-lo a um sábado, dia de merecido descanso semanal, num dos muitos mercados que aos poucos se têm disseminado, transformando-se em interessante atração turística procurada por muitos, a troco do almoço e do salário desse dia!
Segundo o que ele me contou, o artigo que retirou em primeiro lugar da carrinha de transporte da mercadoria, colocado em primeira linha no pano encardido estendido na calçada, a servir de montra expositora, foi um velho e ressequido par de sapatos, muito usados e de cordões gastos pelas muitas ataduras; pelo miserável estado em que se estes se encontravam, segundo este meu amigo, mais pareciam terem sido desenterrados de uma cova do cemitério municipal, destoando pela negativa da qualidade do material restante: belíssimas peças de mobiliário de madeiras nobres, algumas delas em estilo rococó, velhos candeeiros e fogões a petróleo ou, ferramentas antigas e ferrugentas, já sem uso para lá do decorativo.
Para sua grande surpresa, ainda não tinham retirado da viatura todos os valiosos itens para venda, surgiu-lhes um cliente espanhol que se apaixonou instantaneamente pelos sapatos e, depois de os experimentar, aconchegando o rabo no lancil com absoluta descontração, sem discutir o preço, não se importando minimamente com o seu aspecto lamentável, comprou-os!
Ou seja, aquilo que justificou a impressão negativa causada pelos sapatos, o seu péssimo estado de conservação, foi menosprezado pelo cliente que de alguma inexplicável forma, descobriu neles razões para os adquirir: quem sabe, talvez, a cor do cabedal ou a altura do tacão ou, ainda, simplesmente valorizar o seu estilo antiquado, por se enquadrarem nos seus gostos pessoais.
Na verdade, como todos sabemos, cada um de nós possui ao sua escala de valores, agindo em conformidade com elas na relação com os outros e, essas diferenças encontramo-las em todo tipo de ambientes, até familiares!
Não é fácil encontrar explicação para os diferentes gostos de cada um de nós: qual a razão para eu tanto apreciar pézinhos e dobrada com feijão branco, que a minha mãe tão bem cozinhava e, o Carlos, meu irmão mais velho, detestar o pitéu?
De facto, quando o almoço era dobrada com feijão, o interesse do meu irmão pela refeição era relativo, enquanto para mim era sempre motivo de grande satisfação!
O inverso acontecia quando a minha mãe nos enchia o prato com o chamado “comer-de-panela”: aí, nesse caso, o meu interesse pela paparoca diminuía drasticamente, aumentando o dele: eu engolia umas colheradas mas, em esforço!
Deste modo, percebe-se ser tudo relativo, sem verdades que se imponham, aquilo que faz sentido para uns, não faz para outros.
Algum tempo atrás, ao passar de cima para baixo, a ponta do dedo indicador pelo écran do telemóvel, farto da dose exagerada de publicidade patrocinada, mais abstraído do que focado, deparei-me com uma simples frase, partilhada publicamente por alguém sem que me recorde de quem, utilizando o método comparativo de forma magistral, que explica o conceito de relativo;
Nela, na frase, refere-se que uma mãe minhoca diz aos seus filhos que a ameaça está na galinha ou no pato e que deverão ter muito cuidado com eles; já o leão ou o tigre, não são perigosos!
Aprofundando e tentando interpretar o ensinamento desta mãe às suas crias, o que está em causa nesta fabulosa metáfora, será preparar os filhos para que se acautelem relativamente aos perigos que a vida nos trás: num mundo em que coexistem predadores e presas, em que uns se alimentam de outros, é fundamental saber identificar quais são os nossos predadores, aqueles que realmente são verdadeiramente um perigo!
Num contexto ambiental em que os predadores se camuflam com uma pele igual ou parecida às das suas vítimas, projectando nelas a ideia de que são um deles, logo, de absoluta confiança, convém estar atento para conseguir sobreviver!
Henrique Bonança
Quinta do Sobral, 05 de Dezembro de 2024
PS – O meu muito obrigado ao Bruno que generosamente partilhou comigo a sua experiência.